15 Dezembro 2022
"Há um abismo a superar, portanto, para viver a esperança. Há necessidade de uma fé. Seu campo não é aquele do cálculo ou do algoritmo, mas aquele da gratia gratis data como afirma a teologia clássica. O abismo é o da confiança na possibilidade de uma história futura que não conhecemos e que não pode ser deduzida do presente e do passado como se fosse uma conclusão lógica".
A opinião é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Catollica, em artigo publicado em La Reppublica, 06-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja tem futuro? Entre 1945 e 1946, Stig Dagerman publicou seus primeiros romances. Vale a pena reler uma das suas magníficas reflexões, na qual diz, entre outras coisas: “Falta-me a fé e por isso nunca poderei ser um homem feliz, porque um homem feliz não pode ter medo de que a sua vida seja apenas um vagar sem sentido em direção a uma morte certa”. Para o escritor sueco, falta de fé significa falta de futuro. Tudo o que lhe acontece de importante e que confere à sua vida um “conteúdo maravilhoso – o encontro com a pessoa amada, uma carícia na pele, uma ajuda na necessidade, o luar, um passeio de barco no mar, a alegria que uma criança traz, a emoção diante da beleza – tudo isso se realiza totalmente fora do tempo”, escreve. A intuição do maravilhoso se enraíza num presente que não admite nada senão a queima, o abrasamento, o instante. Eis, então, o desafio: proclamar Evangelho só é possível mantendo viva a convicção de que a experiência da graça e da maravilha ainda seja possível como história, como futuro. Este é o ponto: foi perdida a fé na graça.
O tempo da Igreja é o futuro, o devir, não a simples gestão organizacional do presente.
No momento em que passado e presente dominam sem o horizonte do futuro, a mensagem evangélica se mercantiliza. Até a tradição se torna uma mercadoria a ser vendida. Um comércio alto, que fique claro: de valores e de ideias, mas ainda assim um comércio. O Papa Francisco, em uma de suas Mensagens de 2020, escreve a respeito dos discípulos que seguiam a Cristo: “Ele está prestes a começar o cumprimento de seu Reino, e eles ainda se perdem atrás de suas próprias conjecturas”. Hoje como então: estamos perdidos em conjecturas, como se fôssemos nós que devêssemos 'organizar a conversão do mundo ao cristianismo”, escreveu o Papa, ou a própria vida do espírito. Se a Igreja não é uma mera organização, então o sacerdos não pode se reduzir a um burocrata do espírito ou "funcionário da missão" que comercializa a salvação pregando valores. Mas é também por isso que Francisco é alérgico à ideia do reino de Deus que se solidifica na Terra: do “In hoc signo vinces” de Constantino ao “In God we trust”, que lemos no dólar, ao “Gott mit uns”, do nazismo. A teologia cristã da história nada tem a ver com aqueles que prometem o céu na terra, acabando por fazer da terra um inferno.
O grande desafio da Igreja hoje é conseguir pensar um depois, um amanhã, algo que ainda tem que acontecer. Para gerar um futuro - e, portanto, ter esperança - é preciso imaginar, projetar-se em um futuro possível, refletir sobre o que não podemos ver com nossos olhos nem tocar com nossas mãos. Precisamos de uma nova imaginação.
Lembremos que o classicismo vivia a sua própria história no sentido do cíclico e do eterno retorno. O círculo, de fato, é um símbolo de completude e perfeição. Os clássicos, desconfiados das utopias e do futuro, tinham ancorado a sua identidade nas origens e no passado. Tinham idealizado o passado, tinham o mito das origens. E tinham absolutizado o presente: carpe diem! Viva o presente. Ao clássico falta o futuro e, portanto, falta a esperança, que Sêneca entende como dulce malum, um feitiço, porque projeta a vida em um futuro que não é certo. O classicismo tinha necessidade de segurança, de estabilidade. A esperança nasce com o cristianismo.
Portanto, não é de forma alguma óbvio falar de futuro e de esperança. Para falar de futuro da Igreja, contudo, é necessária uma abertura à incerteza. Certamente, porém, há quem pense que o futuro seja uma dedução: dadas algumas condições, pode-se deduzir algo do que vai acontecer. E assim se multiplicam as análises sociológicas e as previsões. Mas isso não tem nada a ver com o que os cristãos chamam de esperança. O futuro confiado à estatística não abre para a esperança, mas para o cálculo das probabilidades, para o pensamento calculista, capaz de fazer previsões mais ou menos confiáveis. O futuro – mesmo o da Igreja – seria assim a continuação lógica do presente com base no passado.
Não há salto, não há desvio, não há abismo, não há desejo, não há inquietação, não há revolução. A esperança da Igreja, ao contrário, é a imersão em uma história que chega até nós, para a qual somos chamados, sem ser produto de nossos cálculos, e menos ainda de "planos pastorais" feitos por "operadores". Se existir essa atitude de fé, então as portas da esperança podem se abrir. É possível gerar um futuro, “habitar na possibilidade”, como Emily Dickinson escreve em seu esplêndido verso: “I dwell in possibility”. Não se trata de acreditar na probabilidade, mas na possibilidade, ou seja, na possibilidade de ter uma experiência não presa aos limites do que é estatisticamente provável. É o território da graça, que implica incerteza, indeterminação. Não a ordem, a codificação, o sólido, mas o informe, o devir, o que ainda não está solidificado e definido.
Há um abismo a superar, portanto, para viver a esperança. Há necessidade de uma fé. Seu campo não é aquele do cálculo ou do algoritmo, mas aquele da gratia gratis data como afirma a teologia clássica. O abismo é o da confiança na possibilidade de uma história futura que não conhecemos e que não pode ser deduzida do presente e do passado como se fosse uma conclusão lógica. Nesse sentido, o futuro não é a análise combinatória das nossas expectativas e esperanças. Seria também um engano fazer residir a esperança na pura projeção combinatória dos nossos desejos. A esperança é o não ainda conhecido, que é capaz de nos surpreender. No fundo, o motor da esperança é o receio de não receber o que se espera, por isso a dúvida, a incerteza, a inquieta precariedade.
Na entrevista que realizei com Francisco em 2013 para La Civiltà Cattolica, ele falou da necessidade de sermos pessoas “de pensamento incompleto”. Certa vez, o Pontífice fez a pergunta: "Deixo-me 'abalar por dentro' pelo paradoxo?" A alternativa seria de permanecer “no perímetro das minhas ideias”.
Nesse sentido, Bergoglio não rejeita a "utopia" como abstração. Ao contrário, reconhece sua carga positiva e seu valor político. A utopia ganha força na insatisfação e no mal-estar gerados pela realidade atual, mas também na convicção de que um mundo diferente é possível. Há aqui uma tarefa radical: reconstruir o imaginário da fé e da convivência humana em uma sociedade em mudança, onde as referências simbólicas e culturais não são mais aquelas do passado.
Se não houver a sensação de vertigem, se não houver a experiência do terremoto, se não houver a dúvida metódica – não a dúvida cética –, a percepção da surpresa incômoda, então talvez não haja experiência de Igreja. Se o Espírito Santo está em ação - afirmou Francisco certa vez - então ele "chuta a mesa". A imagem é feliz, porque é uma referência implícita a Mt 21,12, quando Jesus "derrubou as mesas" dos mercadores do templo. Os comerciantes gabam-se de estar "ao serviço" do mundo religioso. Eles costumam oferecer escolas de pensamento ou receitas prontas para o uso e geolocalizam a presença de Deus, que está "aqui" e não "ali". Futuro ou mercadoria. Possibilidade ou comércio. É por isso que o tempo futuro da Igreja é o suspense.
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O futuro da Igreja é o suspense. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU